Washington nunca ”quis” ”impor” nenhuma ”democracia” no Iraque. O que a Administração Bush quis, desde 2002, foi derrubar o regime de Saddam.
A execução de Saddam Hussein e a redefinição da estratégia norte americana trouxeram o Iraque, mais uma vez, para o centro dos nossos debates. No caso da primeira, as imagens colocam o governo iraquiano ao nível das milícias, o que é naturalmente muito grave. No segundo caso, aguarda-se o discurso do Presidente Bush, onde apresentará uma nova política para o Iraque. No entanto, independentemente do conteúdo, será muito difícil o Presidente norte americano sair da Casa Branca, em 2008, com um sucesso: a estabilização do Iraque antes do final do segundo mandato. Vale a pena, em particular, discutir o que é evidente para todos, incluindo as melhores cabeças. Os Estados Unidos queriam impor a democracia no Iraque e fracassaram. O que quer dizer o ”queriam”, o ”impor”, a ”democracia”? E quais serão as consequências do fracasso?
Antes de mais, Washington nunca ”quis” ”impor” nenhuma ”democracia” no Iraque. O que a Administração republicana sempre quis, desde 2002, foi derrubar o regime de Saddam, e o mais depressa possível. Quando percebeu que não o conseguia por meios pacíficos e com a ajuda de todos os membros do Conselho de Segurança, recorreu à guerra juntamente com o outro membro que aceitou essa estratégia, o Reino Unido. Foi aqui que surgiu o argumento da democracia. Agora é um erro tremendo julgar que a ”imposição da democracia” se transformou, subitamente, numa cruzada política inspirada nos argumentos dos neo-conservadores, à qual Bush se converteu. Nenhum Presidente dos Estados Unidos faz uma guerra sem dizer aos norte-americanos que o uso da força militar vai beneficiar a promoção dos valores democráticos. Nem sequer é necessário recuar muito na história. Vejam com atenção as declarações de Bill Clinton sempre que os Estados Unidos participaram em conflitos militares durante as suas duas presidências. Neste sentido, Bush foi inteiramente fiel à tradição americana e não se afastou um milímetro do seu antecessor. E se recuarmos um pouco mais no tempo, umas quantas décadas ou mesmo um ou dois séculos, descobrimos os mesmos argumentos na Europa, com a ”civilização” a substituir a ”democracia”. Na história do Ocidente, as guerras têm sido justificadas em nome da segurança ou dos valores, e nunca em nome dos interesses nacionais, por mais importantes que estes sejam. Washington continua a ser uma capital ocidental no sentido histórico do termo.
Depois, tendo em conta a radicalização dos debates sobre a guerra, a maioria dos que a defenderam evocaram o argumento da democracia para legitimar a sua posição. O que é mais do que natural, já que a política não é feita por anjos e santos (mais uma conquista ocidental). Além disso, qualquer reforma política no Iraque exigia o derrube de Saddam. Todavia, os mais sensatos sempre souberam que não seria possível simplesmente construir uma ”democracia ocidental” no Iraque. Mas entre esta e o regime de Saddam há muitas formas intermédias superiores à tirania que existia. Por exemplo, um regime que não se apoiasse na violência sistemática, moderado na sua política externa e que respeitasse o pluralismo étnico e religiosos do país. Foi este projecto (e não a ”democracia” em abstracto) que fracassou, até hoje, no Iraque. Mas a verdade é que Washington não se esforçou muito para ”impor” esse sistema político. A maior demonstração foi o facto de o número de tropas nunca ter ultrapassado os duzentos mil.
Ninguém na Administração de Bush quis alguma vez ”impor” algum regime político no Iraque. Pelo contrário, procuraram transferir o mais rapidamente possível o poder para os iraquianos e reduzir o número de tropas até ao mínimo, apenas para ajudar a manter alguma segurança e não serem acusados de abandonar o Iraque.
Os Estados Unidos nunca tentaram ”impor” a democracia por duas razões muito simples, uma sensata e a outra idealista. Por um lado, sabem muito bem que a democracia não se impõe. Pode derrubar-se uma ditadura, e isso fizeram, mas depois a construção de uma ”democracia” (no sentido mais lato do termo) compete às forças políticas locais. Mesmo no Japão e na Alemanha, após 1945, os maiores casos de ”promoção de democracia”, foi isso que aconteceu. Por exemplo, sem ”democracia-cristã” e sem ”social-democracia”, por mais tropas americanas que estivessem na Alemanha, não teria havido democracia alemã. Por outro lado, as principais figuras da Administração americana, a começar pelo Presidente Bush, acreditaram que após o derrube de Saddam, os iraquianos na generalidade desejariam construir um regime democrático. Foi aqui que se enganaram e o engano foi profundo. Mas enganaram-se devido a boas razões: acham que, no essencial, não há diferenças entre europeus e árabes ou entre cristãos e muçulmanos.
O fracasso do Iraque vai levar, depressa, à seguinte conclusão. Em grande parte do mundo não-ocidental não vale a pena colocar a vida dos nossos soldados em risco em nome de reformas e do progresso político. Por outras palavras, muitos irão aceitar que a opção é entre um ”Saddam qualquer” ou a guerra civil. Podemos tirar duas conclusões. Em primeiro lugar, o princípio da universalidade da democracia será questionado, o que irá afectar os pressupostos das políticas externas ocidentais, desde as intervenções militares, até às políticas de aliança e passando pelas políticas de cooperação e ajuda ao desenvolvimento. Em segundo lugar, o facto dos argumentos mais conservadores de todos terem tido razão (após Saddam será a guerra civil) deixa uma forte indicação de como será o futuro. Os ”neo-conservadores” perderam, mas quem ganhou foram os ”velhos conservadores” (e alguns são mesmo muito velhos). O que me espanta foi a rapidez com que muitos ”progressistas” se juntaram a estes.
João Marques de Almeida, Doutorado em Relações Internacionais
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