terça-feira, junho 20, 2006

Hipocrisias humanitárias

Para cumprir a tradição, aqui disponibilizo o artigo de João Marques de Almeida, sempre relevante para os cursos de RI e CP.


Hipocrisias humanitárias


Entre os membros permanentes do Conselho de Segurança, os países ocidentais são aqueles onde se verifica uma maior sensibilidade humanitária.

Numa entrevista dada ao ”Público”, na semana passada, António Guterres queixou-se da pouca atenção que as opiniões públicas europeias dão às crises humanitárias africanas. Observou que com o Iraque todos se preocupam mas, por exemplo, com o Congo e com Darfour são poucos os que dão alguma importância. O alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados explica esta duplicidade com a percepção de que o Iraque afecta a segurança internacional, enquanto os conflitos africanos não ameaçam a Europa. Em parte, esta justificação está correcta, mas convém acrescentar uma explicação adicional. Ao contrário do que muitos julgam, a atenção dada às crises humanitárias não resulta da extensão do desastre humanitário mas de escolhas políticas. E estas não são nada inocentes. O melhor exemplo é o conflito na Palestina. Pela leitura da maioria dos jornais e pela maioria das reacções na Europa, teríamos que concluir que a gravidade da crise humanitária na Palestina não tem equivalente em todo o mundo. Ora, não é verdade, seja qual for o ângulo de apreciação. É fácil encontrar dezenas de conflitos e de crises onde há mais mortes, mais refugiados e mais violações dos direitos humanos. O que se passa é que muita da atenção prestada à Palestina não resulta de uma genuína preocupação com desastres humanitários em geral mas da vontade política de atacar Israel. O mesmo se passa com o Iraque. É óbvio que a situação no país está muito complicada, com o recurso frequente à violência contra civis. No entanto, a dimensão da crise humanitária no Iraque não se compara com o que se passa no Sudão, no Congo e na Somália. Constitui, porém, uma oportunidade magnífica para criticar e atacar os Estados Unidos. As vítimas da violência que não tenha origem em Washington podem queixar-se de uma dupla injustiça: sofrem graves violações dos seus direitos elementares, e o seu sofrimento é geralmente ignorado.

Esta duplicidade constitui, antes de mais, uma traição ao ”ideal humanitário” das democracias ocidentais. As ligações históricas, a proximidade territorial e os interesses políticos influenciam obviamente as nossas preocupações humanitárias. Mas há limites ao particularismo. Perante certas tragédias humanitárias, a indignação dos cidadãos dessas democracias deveria ser universal. Embora compreenda, julgo que a diferença de tratamento no nosso país em relação a Timor e a Darfour revela uma certa falta de maturidade cosmopolita. Acho muito bem que se dê toda a atenção ao caso timorense, mas seria natural que o que se passa no Sudão, apesar de tudo, causasse uma maior indignação entre os portugueses. Em termos de violação de direitos humanos e de desastre humanitário, não há qualquer comparação.

Além da atenção dispensada pelas opiniões públicas ocidentais, as respostas a crises humanitárias dependem da disponibilidade política dos governos. Como notou na mesma entrevista António Guterres, as grandes potências são indispensáveis para o sucesso das acções humanitárias. Qualquer pessoa sabe que, entre os membros permanentes do Conselho de Segurança, os países ocidentais são aqueles onde se verifica uma maior sensibilidade humanitária. Os países europeus, os Estados Unidos, e a própria Aliança Atlântica, estão sempre na liderança das respostas internacionais a desastres humanitários, como aqueles que ocorreram nos últimos tempos no Paquistão, na Índia, na Indonésia, e até no Irão. Há, em particular, um problema muito sério com o modo como a China e a Rússia lidam com crises humanitárias. Todos se referem ao crescimento, à expansão e ao aumento de poder da China e da Rússia, mas poucos notam a absoluta indiferença destes dois países perante problemas humanitários internacionais. E esta indiferença está igualmente presente nas opiniões públicas como nos governos dos dois países.


Nos últimos tempos, muitos observadores têm notado que uma das vantagens comparativas da China em África é o seu pragmatismo em relação a questões de democracia e de direitos humanos. Ao contrário do Departamento de Estado norte-americano, Pequim não demonstra qualquer tipo de preocupação com assuntos humanitários. O zelo norte-americano, de resto partilhado em muitos aspectos pela União Europeia, pode fazer perder alguns negócios, mas dará sem dúvida algum contributo para o progresso da justiça internacional. Corre-se hoje um risco nas capitais ocidentais. O voluntarismo em relação à promoção da democracia, a que muitos associam alguns dos erros mais graves cometidos no Iraque, pode ser substituído por um excessivo cinismo. Não só é necessário encontrar um equilíbrio entre a realpolitik e o idealismo, como fazer a distinção entre uma estratégia utópica de promoção da democracia com a preocupação em responder a crises humanitárias. Ninguém tenha dúvidas. Qualquer tipo de progresso humanitário neste mundo depende essencialmente dos países ocidentais. As chamadas novas grandes potências, tão elogiadas por muitos, estão apenas preocupadas com o seu poder e com a sua riqueza. A operação humanitária é um conceito que não faz parte das suas estratégias de expansão.

João Marques de Almeida, Director do Instituto de Defesa Nacional
in Diario Economico Online.

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