quinta-feira, maio 11, 2006

O Islão e a Democracia

A maior virtude da doutrina da promoção da democracia não é, ironicamente, promover democracias, mas impedir que surja uma entidade geopolítica.

No final da semana passada, participei num colóquio na Universidade Lusíada onde se levantava a seguinte questão: Está o Ocidente em guerra com o Islão? Não está, mas pode vir a estar se não for prudente.

Para evitar um confronto com o Islão, e parto do pressuposto que uma guerra dessa natureza seria trágica para o Ocidente e para o mundo, é preciso entender a natureza das estratégias que procuram o conflito. A politização do Islão é o primeiro elemento dessa estratégia.

Nos documentos e nas declarações dos grupos radicais islâmicos surge invariavelmente a ideia de que o afastamento da religião foi a principal causa do declínio dos países muçulmanos. No plano interno, os problemas económicos e sociais e a corrupção dos governos foram o resultado da adopção de modelos seculares, importados do Ocidente e da antiga União Soviética.

Na maioria dos países, à descolonização após 1945, seguiu-se a importação de regimes políticos de inspiração ideológica externa. Com mais ou menos nacionalismo, como mais ou menos socialismo, do Marrocos à Indonésia, excluindo as monarquias do Golfo, as receitas foram, no essencial, importadas, e a religião ficou afastada do poder político. Em quase todos os casos, as coisas correram mal, e o Islão começou a ser visto como a resposta à pobreza, à corrupção política, e aos vícios de costumes. A Revolução iraniana de 1979 foi o início do ressurgimento islâmico, e o exemplo de maior sucesso da politização do Islão. Paralelamente, criou-se uma interpretação da história, onde o passado grandioso e imperial está a associado à presença da religião na vida política e o declínio aparece como resultado da marginalização política do Islão. Ou seja, os modelos seculares são a causa do problema e a religião faz parte da solução.

Nos países ocidentais, a percepção é oposta. A secularização, iniciada com o Renascimento e desenvolvida pelo Iluminismo, está associada à grandeza e, por isso, embora tenha desempenhado um papel importante na consolidação de uma ética pública virtuosa, no essencial, a religião deve remeter-se à esfera privada. No mínimo, todos aceitam a separação absoluta entre a autoridade política e o poder religioso. São estas experiências históricas opostas que concedem, desde logo, uma natureza radical a muitos movimentos islâmicos. Juntar César com Deus, e Maomé foi a versão muçulmana da junção, não é visto, no Ocidente, como uma proposta moderada de ordem política. O facto dos movimentos islâmicos estarem na oposição e a lutar contra os poderes estabelecidos, recorrendo á violência, reforça o seu carácter radical. Estamos na presença de movimentos que querem chegar ao poder através da revolução e da guerra.

Mesmo o Hamas que ganhou eleições, adquiriu a sua legitimidade política recorrendo ao uso da violência. Assim, a politização do Islão é acompanhada pela radicalização do Islão político. Há, por fim, o elemento transnacional que completa a estratégia do movimento radical islâmico. É fundamental criar causas que sejam sentidas e partilhadas do mesmo modo pelo maior número possível de muçulmanos, independentemente da sua origem. A “causa palestiniana” é um dos exemplos de maior sucesso. A ocupação da Palestina transformou-se no símbolo do domínio do Ocidente sobre o “mundo islâmico”.

As caricaturas sobre Maomé publicadas no jornal dinamarquês foram igualmente usadas para reforçar a unidade transnacional do Islão, em luta contra a “intolerância religiosa do Ocidente”, afinal um dos traços definidores do imperialismo ocidental. E veremos nos próximos tempos manifestações a defender o “direito do Irão ao nuclear” e a atacar as potências ocidentais por mais uma vez quererem “dominar o Islão”. A estratégia de Teerão é fazer do seu programa nuclear mais uma causa do mundo muçulmano contra o Ocidente. São estas “causas” que juntam às mesmas horas, com mensagens iguais, centenas de milhares de pessoas nas ruas da Nigéria, do Egipto, do Irão, do Paquistão, da Indonésia e dos países europeus. E esta percepção de que estão numa luta global comum dá uma enorme força e confiança ao “Islão político”.

Desta analisa, sobram duas conclusões óbvias. Por um lado, a condição fundamental para a “guerra entre o Ocidente e o Islão” é a transformação do segundo numa entidade geopolítica transnacional. Daí, o meu cepticismo em relação a iniciativas como a “aliança com o Islão”. Bem intencionados, os seus autores sublinham a palavra aliança, mas se a estratégia falha, embora involuntariamente, contribuiu-se para a criação do “Islão político”. Por outro lado, a partir desta perspectiva, entendemos os méritos do argumento da promoção da democracia. Mesmo que não se tenha sucesso a promover democracias, está a manter-se o problema num plano político, e de Estados, e a evitar que passe o campo religioso e transnacional. Além disso, os processos de democratização permitem o estabelecimento de alianças entre países ocidentais e movimentos políticos muçulmanos.

Dito de outro modo, neste momento a maior virtude da doutrina da promoção da democracia não é, ironicamente, promover democracias, mas impedir que surja uma entidade geopolítica chamada “Islão”.

João Marques de Almeida, Director do Instituto de Defesa Nacional

in Diario Económico

Texto submetido por Rui Saraiva

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